SOBRE A PRÁTICA MILENAR DA PARTERIA
TRADICIONAL: casos que se repetem no comportamento social referente a partos
que começaram em casa e terminaram no hospital
Nós, parteiras
tradicionais, e parteiras na tradição formadas na Escola do Cais do Parto, quando
fechamos um acordo para um parto domiciliar com gestantes, e, ou, casais
grávidos, não estamos garantindo que
o parto será exatamente como a gestante/família sonhou, que o parto será
natural em casa ou que não haverá dificuldades. Neste sentir, acreditamos ser necessária
a perfeita clareza no entendimento entre as partes sobre como se dará o
atendimento, como um acordo de responsabilidade consensualizada.
Na nossa prática,
garantimos para a gestante, em tempo real, a informação de absolutamente tudo o
que esteja transcorrendo durante o trabalho de parto, sempre sinalizamos como o
trabalho está evoluindo e quando definimos o encaminhamento de alguma mulher
para o hospital isso se dá quando já há algum tempo sinalizávamos a preocupação
e o cuidado em relação a este encaminhamento. Transferimos em tempo hábil, com
segurança, o bebê com os batimentos normais, e a mãe em plenas condições
emocionais, mentais e fisiológicas.
Por efetivarmos o
encaminhamento hospitalar enquanto a mulher ainda aparenta boas condições de
evolução do trabalho de parto, alguns profissionais que recebem a gestante e
seus acompanhantes nas unidades de saúde têm feito julgamentos e críticas, sem antes
se inteirarem do porquê da transferência, da quantidade de horas em trabalho de
parto em domicílio, da quantidade de horas de bolsa rota, sobre a existência de
oscilações do batimento cardíaco do bebê, entre outros detalhes da condução.
Neste sentir,
acabam por não reconhecer a qualidade do nosso trabalho e menosprezam o cuidado
com a segurança, integridade física, mental e emocional do bebê e cristalizam
uma culpa ou uma falta de conhecimento que denigre a integridade das
profissionais parteiras tradicionais, desrespeitando a ética profissional e
banalizando o risco. Tal conduta acaba por acirrar conflitos entre os
diferentes segmentos da assistência a gestação, parto e nascimento,
fragmentando e fragilizando instituições, movimentos, organizações e grupos
sociais diretamente ligados ao universo do parto e nascimento.
Existe um
movimento mais recente neste universo do parto que tem uma prática claramente
dual. Ao mesmo tempo em que critica e rejeita o ambiente hospitalar, adota
práticas e técnicas que são hospitalares, práticas arriscadas, e vão às ultimas
consequências, apoiados na tecnologia, alopatia e intervenções radicais. Apesar
da contradição na hora das definições de espaços de atuação, esse movimento,
junto com os profissionais hospitalares, se aliam tornando-se socialmente mais
contundentes em termos de movimento social do que nós, as parteiras
tradicionais e doulas na tradição, que apenas reproduzimos em domicílio o que
sempre foi feito pelas nossas ancestrais. Não queremos reinventar a roda, somos
leais aos nossos princípios, e com o compromisso com a vida de qualidade, como
sempre foi na ancestralidade que honramos.
Acontece,
eventualmente, que gestantes, não estando tão determinadas com o que realmente
querem, ficam oscilando entre o movimento factoide e a tradição. Seu coração diz que a tradição realiza todos
os princípios em que acreditam para o nascimento, mas o movimento é o que é aceito
por toda a sociedade e é o que traz a sensação de pertencimento. E as pessoas
necessitam sentir-se pertencendo a algum grupo, a algo, precisam ser aceitas, sobretudo,
quando há insegurança e superficialidade.
Tudo que foi dito
me parece fácil de compreender, mas, e daqui pra frente?
Para estarmos
seguras, com consciência do que estamos fazendo, do que é necessário, do que é
correto e honesto sobre o nascimento, precisamos olhar pela ótica do bebê.
Depois que o bebê
passa pelo canal do parto enfrentando seu primeiro grande desafio, que só
depende dele, se ajustando, se adaptando, criando soluções para enfrentar e
superar os desafios do nascer pelo caminho natural, de chegar nesta vida, ele está
preparado para o que virá pela frente na sua vida toda. Antes, ainda na vida
intrauterina, onde o mundo é perfeito, quando acontece algum grande problema
externo com a mãe, que signifique uma ameaça, como, por exemplo, a pressão dos
medos, pode acontecer do bebê eliminar mecônio, e isto jamais ficará registrado
para o bebê como apenas um sinal de amadurecimento, jamais! Ficará sim como um
provável sinal de risco, de ameaça ao parto natural, ao seu caminho natural,
não vejo nenhum ganho com isso.
Quando, por
problemas da mãe, como hipertensão arterial, medos surreais, por traumas, abusos,
violência, a dinâmica do trabalho de parto não evolui, ou algumas vezes pelo
cordão curto ou alguma outra distócia o bebê não desce e os batimentos se
alteram bruscamente, a princípio oscilando, e, em não se tomando nenhuma
atitude, se chega a um estágio de sofrimento fetal agudo, colocando em risco a
vida do bebê ou a sua vitalidade cerebral, isso pode tornar aquele ser incapacitado
para o resto da vida.
Neste momento de
2013-2014, em que estou convivendo com dificuldades cardíacas, sei exatamente
como se sentem as pessoas com dificuldades nos batimentos do coração, sejam elas
grandes ou pequenas, nascidas ou ainda não nascidas. A bradicardia, taquicardia
ou arritmia, é uma sensação de morte iminente e quando isso acontece,
automaticamente, o medo toma conta, domina. Tentemos imaginar como se sente um
bebê, dentro do útero, com essas ameaças e pressões, sem ter por onde sair e
sem poder pedir ajuda.
Nós da tradição
das ancestrais parteiras, somos felizes e carregamos a consciência de manter a
sensação de dever cumprido. Enquanto estão sob nossos cuidados, garantimos a
integridade física, mental e emocional, e se encaminhamos um parto inicialmente
domiciliar para uma unidade hospitalar, o fazemos com o compromisso de
preservar a qualidade de vida da mãe e da criança. Quando isso acontece
cumprimos com o nosso dever, mas não temos como garantir que no hospital os
profissionais tenham o mesmo compromisso, pois isso já não depende mais de nós.
E quanto às
mulheres confusas, equivocadas, e que, exatamente por não terem determinação e
consciência acabam por transferir TODA a responsabilidade pelo insucesso na
concretização do seu ideal para a equipe profissional, seja onde for, e depois,
diante da frustração, acabam criticando, acusando, porque não tiveram o parto
dos sonhos, sem se dar conta de que foram elas mesmas que construíram esse
caminho de frustrações e tristeza, e
principalmente, porque em NENHUM
momento pensaram no filho ou filha, só pensaram nelas mesmas, na sua vaidade,
no seu ego; era necessário que o espírito encontrasse uma forma de desmontar a
fantasia fazendo essas mulheres caírem na realidade difícil de aceitar de que
foram elas mesmas quem construíram esse resultado. Porque nenhuma criança
merece ter uma mãe que ainda não se assumiu como mãe verdadeiramente, incluindo
iniciar todos os sacrifícios necessários pelo bem maior que é seu filho ou
filha. Após esse encontro, aí sim a vida seguiria em equilíbrio, com perspectivas
de felicidade.
Suely Carvalho.
Lua cheia de
agosto de 2014