sexta-feira, 29 de agosto de 2014

SOBRE A PRÁTICA MILENAR DA PARTERIA TRADICIONAL: casos que se repetem no comportamento social referente a partos que começaram em casa e terminaram no hospital



SOBRE A PRÁTICA MILENAR DA PARTERIA TRADICIONAL: casos que se repetem no comportamento social referente a partos que começaram em casa e terminaram no hospital

Nós, parteiras tradicionais, e parteiras na tradição formadas na Escola do Cais do Parto, quando fechamos um acordo para um parto domiciliar com gestantes, e, ou, casais grávidos, não estamos garantindo que o parto será exatamente como a gestante/família sonhou, que o parto será natural em casa ou que não haverá dificuldades. Neste sentir, acreditamos ser necessária a perfeita clareza no entendimento entre as partes sobre como se dará o atendimento, como um acordo de responsabilidade consensualizada.

Na nossa prática, garantimos para a gestante, em tempo real, a informação de absolutamente tudo o que esteja transcorrendo durante o trabalho de parto, sempre sinalizamos como o trabalho está evoluindo e quando definimos o encaminhamento de alguma mulher para o hospital isso se dá quando já há algum tempo sinalizávamos a preocupação e o cuidado em relação a este encaminhamento. Transferimos em tempo hábil, com segurança, o bebê com os batimentos normais, e a mãe em plenas condições emocionais, mentais e fisiológicas.

Por efetivarmos o encaminhamento hospitalar enquanto a mulher ainda aparenta boas condições de evolução do trabalho de parto, alguns profissionais que recebem a gestante e seus acompanhantes nas unidades de saúde têm feito julgamentos e críticas, sem antes se inteirarem do porquê da transferência, da quantidade de horas em trabalho de parto em domicílio, da quantidade de horas de bolsa rota, sobre a existência de oscilações do batimento cardíaco do bebê, entre outros detalhes da condução.

Neste sentir, acabam por não reconhecer a qualidade do nosso trabalho e menosprezam o cuidado com a segurança, integridade física, mental e emocional do bebê e cristalizam uma culpa ou uma falta de conhecimento que denigre a integridade das profissionais parteiras tradicionais, desrespeitando a ética profissional e banalizando o risco. Tal conduta acaba por acirrar conflitos entre os diferentes segmentos da assistência a gestação, parto e nascimento, fragmentando e fragilizando instituições, movimentos, organizações e grupos sociais diretamente ligados ao universo do parto e nascimento.

Existe um movimento mais recente neste universo do parto que tem uma prática claramente dual. Ao mesmo tempo em que critica e rejeita o ambiente hospitalar, adota práticas e técnicas que são hospitalares, práticas arriscadas, e vão às ultimas consequências, apoiados na tecnologia, alopatia e intervenções radicais. Apesar da contradição na hora das definições de espaços de atuação, esse movimento, junto com os profissionais hospitalares, se aliam tornando-se socialmente mais contundentes em termos de movimento social do que nós, as parteiras tradicionais e doulas na tradição, que apenas reproduzimos em domicílio o que sempre foi feito pelas nossas ancestrais. Não queremos reinventar a roda, somos leais aos nossos princípios, e com o compromisso com a vida de qualidade, como sempre foi na ancestralidade que honramos.

Acontece, eventualmente, que gestantes, não estando tão determinadas com o que realmente querem, ficam oscilando entre o movimento factoide e a tradição.  Seu coração diz que a tradição realiza todos os princípios em que acreditam para o nascimento, mas o movimento é o que é aceito por toda a sociedade e é o que traz a sensação de pertencimento. E as pessoas necessitam sentir-se pertencendo a algum grupo, a algo, precisam ser aceitas, sobretudo, quando há insegurança e superficialidade.

Tudo que foi dito me parece fácil de compreender, mas, e daqui pra frente?
Para estarmos seguras, com consciência do que estamos fazendo, do que é necessário, do que é correto e honesto sobre o nascimento, precisamos olhar pela ótica do bebê.

Depois que o bebê passa pelo canal do parto enfrentando seu primeiro grande desafio, que só depende dele, se ajustando, se adaptando, criando soluções para enfrentar e superar os desafios do nascer pelo caminho natural, de chegar nesta vida, ele está preparado para o que virá pela frente na sua vida toda. Antes, ainda na vida intrauterina, onde o mundo é perfeito, quando acontece algum grande problema externo com a mãe, que signifique uma ameaça, como, por exemplo, a pressão dos medos, pode acontecer do bebê eliminar mecônio, e isto jamais ficará registrado para o bebê como apenas um sinal de amadurecimento, jamais! Ficará sim como um provável sinal de risco, de ameaça ao parto natural, ao seu caminho natural, não vejo nenhum ganho com isso.

Quando, por problemas da mãe, como hipertensão arterial, medos surreais, por traumas, abusos, violência, a dinâmica do trabalho de parto não evolui, ou algumas vezes pelo cordão curto ou alguma outra distócia o bebê não desce e os batimentos se alteram bruscamente, a princípio oscilando, e, em não se tomando nenhuma atitude, se chega a um estágio de sofrimento fetal agudo, colocando em risco a vida do bebê ou a sua vitalidade cerebral, isso pode tornar aquele ser incapacitado para o resto da vida.

Neste momento de 2013-2014, em que estou convivendo com dificuldades cardíacas, sei exatamente como se sentem as pessoas com dificuldades nos batimentos do coração, sejam elas grandes ou pequenas, nascidas ou ainda não nascidas. A bradicardia, taquicardia ou arritmia, é uma sensação de morte iminente e quando isso acontece, automaticamente, o medo toma conta, domina. Tentemos imaginar como se sente um bebê, dentro do útero, com essas ameaças e pressões, sem ter por onde sair e sem poder pedir ajuda.

Nós da tradição das ancestrais parteiras, somos felizes e carregamos a consciência de manter a sensação de dever cumprido. Enquanto estão sob nossos cuidados, garantimos a integridade física, mental e emocional, e se encaminhamos um parto inicialmente domiciliar para uma unidade hospitalar, o fazemos com o compromisso de preservar a qualidade de vida da mãe e da criança. Quando isso acontece cumprimos com o nosso dever, mas não temos como garantir que no hospital os profissionais tenham o mesmo compromisso, pois isso já não depende mais de nós.

E quanto às mulheres confusas, equivocadas, e que, exatamente por não terem determinação e consciência acabam por transferir TODA a responsabilidade pelo insucesso na concretização do seu ideal para a equipe profissional, seja onde for, e depois, diante da frustração, acabam criticando, acusando, porque não tiveram o parto dos sonhos, sem se dar conta de que foram elas mesmas que construíram esse caminho de frustrações e tristeza, e  principalmente,  porque em NENHUM momento pensaram no filho ou filha, só pensaram nelas mesmas, na sua vaidade, no seu ego; era necessário que o espírito encontrasse uma forma de desmontar a fantasia fazendo essas mulheres caírem na realidade difícil de aceitar de que foram elas mesmas quem construíram esse resultado. Porque nenhuma criança merece ter uma mãe que ainda não se assumiu como mãe verdadeiramente, incluindo iniciar todos os sacrifícios necessários pelo bem maior que é seu filho ou filha. Após esse encontro, aí sim a vida seguiria em equilíbrio, com perspectivas de felicidade.

Suely Carvalho.


Lua cheia de agosto de 2014

1 Comentários:

Carolina Frîncu disse...

Suely, amei o curso de doulas de vcs, mas e vc me perguntar de que mais gostei, foi justamente dessa visão do preparo da família como acolhedora e responsável por uma nova vida. No seu TED vc tb fala disso, de fazer a mãe captar essa responsabilidade, de assumir seu papel. Tô enjoada de ver mulher brincando de ter parto desse ou aquele modelo como quem escolhe esmaltes, apenas para garantir um direito seu. Ok, é um direito, mas é preciso ir mais além e focar no ser que chega, e isso engloba o preparo emocional, a quebra dos castelos fantasiosos, isso engloba ter consciência das noites mal dormidas (que são valiosíssimas, uma a uma), da abnegação de si. Parabéns por isso! Acho que vc matou a grande charada desses tempos.
Com respeito, Carolina Frîncu